estudos bíblicos
A contemporaneidade dos dons: um panorama histórico
Do Novo Testamento à Igreja atual.
No original grego, a palavra “dom” é charisma, que significa presente, manifestações do Espírito que nos são oferecidas mediante a graça divina por parte de Deus como o doador dos dons.
De acordo com o pastor Russel N. Champlim[1], “charisma indica os dons do Espírito, as suas graças, gratuitamente conferidas para a obra do ministério. Além disso, enfoca também o dom da graça, que nos traz a salvação’’.
Empreender uma busca sincera para ser cheio do Espírito Santo e receber os dons do alto é uma atitude correta. O apóstolo Paulo nos orienta desta forma: “Enchei-vos do Espírito” (Ef 5.18).
A operação dos dons e o Novo Testamento
Com os dons engrandecemos o reino de Deus, porque é por intermédio de nossa vida que se manifesta a sua glória.
Os dons são concedidos mediante a graça de Deus. “Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus” (1Pe 4.10).
Por meio da sua bondade Deus expressa sua graça de várias maneiras “Ora, os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo.
E também há diversidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade nas realizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos. A manifestação do Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveitoso” (1 Co 12.4-7).
Na Bíblia existem muitos dons, divididos em três classes: os dons de serviço diaconal (Rm 12.6-8), os dons ministeriais (Ef 4.11) e os dons do Espírito (1 Co 12.8-10).
A doutrina do Espírito Santo na Igreja a base dos dons
O estudo dos dons não deve não apenas ser abordado do ponto de vista bíblico, mas também deve ser feita uma análise histórica a respeito das manifestações destes carismas ao longo dos séculos, bem como no surgimento do movimento pentecostal a partir de 1900, na escola bíblica de Topeka, nos Estados Unidos[2]. A manifestação dos dons espirituais tem sido objeto de estudo tanto de pesquisadores cristãos quanto de estudiosos não-confessionais. Estes estudos são laborados geralmente por estudiosos de ciências da religião, matéria que estuda a influência religiosa sobre o homem.
Os cristãos primitivos, até o início do quarto século, acreditavam que havia um Espírito Santo da mesma natureza do Pai e do Filho. Criam que, por meio de Cristo, eram reconciliados com o Pai. Os crentes confessavam esta fé no ato do batismo e no recebimento da bênção apostólica. Não havia entre os teólogos da época uma definição da Pessoa e ofício do Espírito Santo. No século terceiro a controvérsia ariana tomou vulto e o Concílio de Nicéia, em 325 d.C., e logo em seguida o Concílio de Constantinopla, em 381 d.C., foram convocados para definir a doutrina do Espírito Santo.
O Credo Apostólico afirma simplesmente[3]: Creio no Espírito Santo, estas mesmas palavras foram afirmadas no Credo Niceno, mas no Credo de Constantinopla, ficou definida a doutrina do Espírito, com a seguinte forma: “Creio no Espírito Santo, o divino, o doador de vida, que procede do Pai, o qual deve ser adorado e glorificado com o Pai e com o Filho, e o qual falou pela boca dos profetas.”
Os dons e os país da Igreja
Durante o período patrístico, o famoso período dos pais da Igreja, houve uma ênfase acerca da importância dos dons espirituais, como legitimado pelas palavras de Irineu:
“Senhor, único e verdadeiro Deus, faça que domine em nós, por meio do nosso Senhor Jesus Cristo, o Espírito Santo”[1]. De modo semelhante, Ireneu explica na Demonstração da pregação apostólica I, 1,6s: “O terceiro fator principal é, pois, o Espírito Santo, por meio do qual os profetas profetizaram e os pais aprenderam as coisas divinas, os justos caminharam na estrada da justiça, o qual na plenitude dos tempos foi derramado de novo sobre a humanidade e sobre o mundo inteiro para recriar os homens para Deus. O nosso renascimento no Batismo é efetivado por estes três fatores, enquanto o Pai nos dá a graça do renascimento mediante o Filho no Espírito Santo. Aqueles que, de fato, recebem e levam em si o Espírito Santo são guiados ao Verbo, isto é, ao Filho. O Filho, por sua vez, os guia ao Pai, e o Pai os torna participantes da imortalidade. Sem o Espírito não se pode ver o Verbo de Deus, e sem o Filho ninguém pode ir ao Pai. De fato, o saber do Pai é o Filho. Mas o saber do Filho de Deus se obtém mediante o Espírito Santo, e o Filho dispensador doa o Espírito por beneplácito do Pai, àqueles que o Pai quer e como quer”[4].
Como fruto do ensino bíblico, o concilio de Nicéia no ano de 325, inseriu a crença no Espírito Santo: “Cremos no Espírito Santo”. Sendo isso fruto do ensino dos apóstolos, como legitimado por meio das prédicas bíblicas do apóstolo Paulo que ensinou à Igreja de Roma sobre os dons de serviço, a Igreja em Éfeso sobre os dons ministeriais e a Igreja de Corinto doutrinou acerca dos dons do Espírito Santo.
O apóstolo Pedro orientou os membros de todas as épocas para que servissem a Deus cada um conforme o seu dom. Portanto, a manifestação dos dons espirituais era uma realidade no seio da Igreja Apostólica, tornando cada culto uma celebração viva da presença de Deus na Igreja (I Co 14.26). Já no século II da era cristã, tanto Justino Mártir, quanto Hirineu reconheciam que os dons miraculosos continuavam a operar na Igreja e por volta de 150, no entanto, declara:
“… ouvimos que também muitos irmãos da Igreja têm carismas proféticos, falam todas as línguas graças ao Espírito, manifestam os segredos dos homens para beneficio deles e explicam os mistérios de Deus”.[5]
Assim como Irineu, Orígenes também confirmou a importância da ação do Espírito nos primeiros séculos e por volta de 240, escreve: “Ainda hoje se conservam os traços daquele Espírito Santo que foi visto em forma de pomba; os cristãos expulsam os demônios, curam diversas doenças e veem também alguns acontecimentos futuros por vontade do Verbo” [6]
Já Tertuliano olhava com bons olhos a operação dos dons e posteriormente converteu-se ao Montanismo, um movimento fundado por Montano, que, apesar de alguns exageros, ensinava sobre a operação dos dons[7].
João Crisóstomo e Hilário apoiavam a contemporaneidade dos dons miraculosos. Porém, no terceiro século, Constantino assume o controle da Igreja e une esta com o governo, o que gerou um estado de letargia dentro da comunidade cristã da época, pois muito do paganismo romano foi incorporado ao culto cristão.
Controvérsias teológicas que envolveram os dons
Portanto com o passar do tempo, houve um interesse cada vez menor por parte dos cristãos em estudar os dons, isso gerou várias controvérsias teológicas sobre o seu uso após o período apostólico. Agostinho, considerado o maior teólogo de todos os tempos, no início de sua carreira se opunha veementemente ao exercício dos dons miraculosos em especial o dom de línguas:
“…Nos tempos antigos o Espírito Santo veio sobre os crentes e eles falaram em línguas, que não haviam aprendido, conforme o Espírito concediam que falassem. Estes foram sinais adaptados ao tempo. Pois aquilo foi o sinal do Espírito Santo em todas as línguas [idiomas] para mostrar que o Evangelho de Deus era para ser espalhado a todas as línguas sobre a terra. Isto foi feito por um sinal, e o sinal findou.”[8]
Já Tomás de Aquino, um dos mestres da igreja no século XIII d.C, considerava os dons como um fator determinante para a Igreja. Ao longo dos séculos, os dons miraculosos foram aceitos entre os discípulos de Montano no século III e entre grupos menores, como os quaquers e os grupos de evangelização de fronteira nos Estados Unidos entre os séculos XVIII e XIX.
A Reforma Protestante a doutrina do Espírito e os dons
Entre o período pós-patrístico e a reforma, houve pouca sistematização do ensino sobre os dons e não houve muito interesse sobre este tema.
Com o advento da Reforma Protestante e por meios dos escritos dos reformadores, começou-se a escrever mais acerca deste tema, sendo João Calvino um dos primeiros teólogos a sistematizar a doutrina do Espírito Santo, ficando conhecido como o teólogo do Espírito Santo[9].
Portanto, com o passar do tempo, alguns dons bíblicos passaram a ser conhecidos e aceitos no meio cristão e como consequência, houve a manifestação poderosa de dons nos ministérios de João Wesley, Finney e Moody.
Em seu livro sobre o dom de profecia, o destacado professor de Teologia, Wayne Grudem, afirma que Charles Spurgeon constantemente exercia o dom de profecia no meio de suas mensagens[10].
A Teologia da Reforma e o cessacionismo
Entretanto, muitos dos reformadores eram cessacionistas, pois criam em alguns dons, mas, acreditavam que alguns carismas haviam cessado no primeiro século com a morte do ultimo apóstolo. Portanto, de acordo com Gordon Chow:
“O Cessacionismo: é a teoria de que muitos milagres, bem como dons espirituais, existiam em função da formação do cânon do Novo Testamento – quer dizer que houve um poderoso derramamento de milagres na vida de Jesus, e dos apóstolos, mas que cessou depois de encerrado o cânon do Novo Testamento.”
O Cessacionismo sempre foi muito difundido no contexto das igrejas reformadas dos EUA, e teve como base alguns escritos de algum país da igreja e a sistematização dos escritos de Benjamim Warfield teólogo e professor de Princeton.
Atualmente, o cessacionismo é muito popular entre alguns pastores reformados tanto nos Estados Unidos como no Brasil.
A segunda bênção
Com o passar do tempo, houveram muitos debates, e a partir dos estudos e da experiência de homens como John Wesley e Moody, houve um maior interesse pelos dons espirituais.
Enquanto teólogo, evangelista e estudioso das Escrituras, John Wesley procurou influenciar o Cristianismo por meio de um cristianismo experiencial, mas que não perdesse sua influência bíblica e pregou insistentemente a idéia da “Segunda Benção” que seu amigo John Fletcher (1729-1785) chamou de “batismo no Espírito Santo”, o que possivelmente foi uma das grandes influências recebidas pelo Pentecostalismo.
Portanto, mesmo antes do chamado pentecostalismo moderno florescer, já havia diversas vozes provenientes dos movimentos de Santidade, que enfatizavam a doutrina do “batismo no Espírito Santo”, sendo mais tarde, e com o surgimento do movimento pentecostal no início do século XX, incorporado ainda uma terceira benção, ou a Doutrina da Evidência Inicial do batismo no Espírito Santo, que seria o falar em línguas, ensino este formulado por Charles Parham, o pai do Pentecostalismo.[11]
O movimento pentecostal
Com o passar do tempo, foram surgindo movimentos com fundamentação e orientação variadas e entre eles o chamado Segundo Grande Despertamento, que tinha como característica o chamado “Movimento de Santidade” o que fundamentou o Movimento Pentecostal americano que nasceu em uma Escola Bíblica, dirigida por Charles Parham, o qual, após as aulas, buscava a Deus em oração junto com seus alunos.
Entre os alunos mais ilustres estava Seymour, o pregador do Movimento Pentecostal da Rua Azusa em 1906, na chamada Igreja da Fé Apostólica, que deu origem ao Movimento Pentecostal no mundo e que influenciou os jovens Daniel Berg e Gunnar Vingren, os quais trouxeram o Movimento para o Brasil.
Portanto, os dons miraculosos e a contemporaneidade de todos os dons foram aceitos no começo do século XX, com o surgimento do movimento pentecostal, que teve seu início na Escola Bíblica de Topeka, em 1904, atingiu a Igreja da Rua Azuza, em Los Angeles, a partir de 1906, e de lá contagiou todo o cristianismo, chegando ao Brasil em 1911.
Este seguramente é o maior reavivamento de todos os tempos, podendo ser conhecido também como uma nova reforma no meio eclesiástico.
Após o pentecostalismo, surgiram novos derramamentos do Espírito em vários lugares do mundo e com as mais diversas denominações, levando Igrejas históricas a reverem o seu posicionamento teológico concernente à contemporaneidade dos dons espirituais.
Os dons e o equilíbrio
Os dons são muito importante, por meio deles igreja é fortalecida, entretanto, muitos pastores e teólogos evitam pregar ou ensinar sobre os dons por causa dos exageros, já outros líderes, passam a desprezar a teologia bíblica e se envolvem em uma busca frenética por dons espirituais, o que acaba gerando o emocionalismo e o exagero. Portanto, devemos buscar os dons espirituais com equilíbrio e maturidade.
A importância
Enfim, toda pessoa salva possui dons espirituais, como também toda igreja local, sendo o estudo dos dons responsabilidade dos ministros.
O pastor Purkiser, da Igreja do Nazareno, tratando do tema, é enfático: “Toda a verdadeira função do corpo de Cristo tem um membro capaz de executá-la, e cada membro tem uma função a executar”.
Paradoxalmente, muitos crentes passam anos na igreja sendo imparciais diante desse assunto, ignorando-o e gerando falta de conhecimento bíblico: “A respeito dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes” (1 Co 12.1).
Todos nós fomos chamados por Deus para desempenhar uma função no Reino e precisamos ser equipados com os dons necessários para o serviço cristão, já que, no exercício dos dons, existe prazer.
[1] CHAMPLIM, Russel Normam. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Editora Hagnos: São Paulo, 2006.
[2] MARTINS, Orlando. A Educação Teológica Formal e a experiência religiosa nas Assembléias de Deus: conflito e dialética. Monografia Lato sensu. Faculdade Dom Bosco. Cascavel, 2017.
[3] MARTINS, Orlando. O Espírito Santo: uma introdução teológica a pessoa e a obra. Editora AD Santos: Curitiba, 2017.
[4] ABADIA, Joacir Soares. 07 de maio de 2009. Disponível em: http://www.vidapastoral.com.br/artigos/patristica/o-espirito-santo-nos-padres-da-igreja. Acesso em 18 mar. 2018.
[5] IRINEU. Contra os heresias V, 6,1.
[6] ORÍGENES. Contra Celso I, 46.
[7] SANTOS, Heladio. O Montanismo emergiu do catolicismo? 03 de Abril de 2017. Disponível em: http://teologiacarismatica.com.br/o-montanismo-emergiu-do-catolicismo/ Acesso em 18 mar.2018.
[8] BUSENITZ, Nathan. A Cessação dos dons apostólicos. Disponível em: < https://www.internautascristaos.com/textos/artigos/a-cessacao-dos-dons-apostolicos> apud in: Agostinho. Homilias sobre a Primeira Epístola de João, 6.10. Cf. Schaff, NPNF, First Series, 7:497-98. Acesso em 18 mar. 2018.
[9] LOPES, Augustus Nicodemus. Calvino o teólogo do Espírito. Editora PES: São Paulo.
[10] GRUDEM, Wayne. O Dom de Profecia. Editora Vida: São Paulo, 2004.
[11] CHAVES, Pedro Jonatas da Silva. Raízes históricas do pentecostalismo moderno. Azusa: Revista de Estudos Pentecostais, Joinville, v. 7, n. 1, p. 75-92, jan. /jun. 2016.